"INDIGNAÇÃO"
Muito jovem Valéria se aposentou, e mesmo antes de fazê-lo, já havia decidido pela adoção de um bebê. Projeto diversas vezes adiado, este seria o momento apropriado.
Dirigiu-se ao Fórum, preencheu alguns formulários, fotografou a casa como solicitado, tirou atestado de bons antecedentes, xerocou contra-cheques, e etc e tal. Economicamente não faltaria nada para seu filho, e mesmo não sendo uma fortuna, seus proventos seriam suficientes para viverem muito bem. Meses depois, a assistente social do Fórum veio até seu endereço residencial (depois dela limpar o pó da estante, perfumar a casa e colocar flores no vaso), mediu o tamanho dos aposentos e fez suas anotações, com rosto severo e sem sorrisos. Valéria ofereceu-lhe café, e ela o recusou. Na sala o microcomputador e a televisão, na parede o diploma de Culinária da Escola Feminina; uma cozinha pequena conjugada, box blindex no banheiro, espelhos no quarto, uma mesinha com retratos, e outros objetos personalizavam seu ambiente. Naturalmente, isso é irrelevante, o que importava era o imenso amor que ali transcendia. Passou pelas mãos de Valéria, uma Revista Cláudia de Novembro/2000, onde constava um pequeno texto sobre Mulheres nos Tribunais: “A nova safra de juízes do Estado de São Paulo é composta, em sua maioria, de mulheres e jovens. Dos setenta aprovados no último concurso para a magistratura, 52 % são do sexo feminino, e 67 % tem menos de 25 anos”. Que bom!... - pensou consigo, gente nova, idéias novas, certamente a sociedade só teria a ganhar.
Também encontrou nesse meio tempo, uma ex-funcionária da Casa da Salvação, uma entidade de ajuda humanitária, a Marron. Esta a informou que, uma linda menininha fora abandonada, lá na Creche Amparo Maternal, e a mãe que a gerou logo a doou, nem quis ver seu rostinho, contou-lhe com pesar. Foi então, que tomou conhecimento do elevado número de bebês rejeitados, e largados nesta Maternidade Amparo, e em seguida encaminhadas a essa Casa da Salvação, onde aguardavam por famílias de bom coração que as adotassem. Valéria foi até a Casa (da Salvação) ver as criancinhas, e a responsável logo foi lhe avisando: - Custa caro manter uma criança, uma lata de leite especial custa seis reais! - e media com o olhar a visitante, tentando desestimulá-la a continuar em seu projeto. Ela não entendeu muito bem o que havia por trás das entrelinhas. Continuou a fazer o enxovalzinho de seu filho, com todo carinho do mundo. Buscou conselhos das amigas, começou a ler artigos sobre cuidados com as crianças, e fez um estudo sobre “Shantalla”, uma massagem especial para bebês. Enfim, programou-se para recebê-lo. Umas semanas depois, foi chamada ao Fórum para uma entrevista com a psicóloga. A tal psicóloga não possuía mais que 25 anos, e durante uma hora questionou a vida afetiva e familiar de Valéria, risonha e faceira feito um calouro em primeiro dia de aula. Dois meses depois recebeu um chamado para audiência com a Mma. Juíza. Prontamente se apresentou.
Com a serenidade das mulheres sofridas e experientes, que carregam na face um sorriso de paz, porém incauta, postou-se a sua frente. - Porquê a Sra. abriu este Processo de Adoção? – indagou a juíza. - Sempre desejei ser mãe, ter uma família; fui casada, fiquei grávida e perdi meu filho. E, desde então, penso em adotar um bebê, têm muitas crianças abandonadas nesta cidade. Crianças precisam de um lar, de uma mãe.
- A Senhora não tem perfil de mãe! – declarou laconicamente. Valéria emudeceu. Só conseguiu ficar com a boca aberta e os olhos arregalados, fitando incrédula aquela mulher vestida de juíza.
- Tudo neste Processo, o Laudo Técnico... me diz que “não é apropriado entregar-lhe uma criança em adoção” – leu num relatório assinado pela psicóloga. - Preferem deixar as crianças jogadas na rua?!... Pobrezinhas inocentes ao relento?! – indagou atônita, com um nó na garganta e com uma lágrima inundando seus olhos feridos.
A Mma.Juíza tentou, com uma resposta evasiva, explicar–lhe que uma criança precisa de um lar adequado... Que um bebê precisa mais do que a solicitante teria para lhe dar. Valéria fixou o olhar naquela mulher fria diante de si, toda bem vestida e cheia de jóias. Se não tivesse absoluto controle sobre si mesma, não teria ficado nem mais um minuto ali. A tal psicóloga tinha anotado no laudo tecnico: “A Senhora Valéria tem um contato tênue com a realidade".
Imagine você, uma pessoa que estudou numa Universidade, que trabalhou numa Instituição Financeira nos últimos 30 anos, casou e se separou (o que pode acontecer a qualquer um de nós), que nasceu no interior em meio ao verde das matas, que passou suas férias viajando em excursões pelo país, que jogava vôlei no time da Faculdade e tudo o mais ... diga-me você, caro leitor, "esta senhora poderia ter um frágil equilíbrio?” Será que uma pessoa bacana como Valéria, merecia ouvir dessa psicóloga retrógrada, que “a adoção poderia colocar a criança em situação de risco emocional e até mesmo concreto?!” Valéria reviu diante de si: Aninhas, Ninas, Elaines, Paulinhos, Luizinhos, Zezinhos, e muito mais meninos e meninas de rua, que diariamente via passando ante seus olhos, naquela temível São Paulo. Por acaso, essa quantidade imensa de crianças largadas pelas ruas não estava exposta a todo tipo de risco e de violência?! Encerrada a audiência, a Mma. Juíza a aconselhou a fazer algum trabalho voluntário, ou arranjar um namorado, ou fazer terapia com alguma psicóloga. Mas, Valéria já era voluntária na Associação Brasileira de Voluntários em Musicotepia, e fazia um excelente trabalho na recuperação de excepcionais, desprezados pela sociedade, onde colocava todo seu amor e dedicação pelo ser humano. Poderia contar sobre isso, mas, não iria “mendigar” apoio da Mma. Juíza. Preferiu se calar, pois nenuma palavra seria suficientemente convincente a essas alturas. Retirou-se calmamente.
Dias depois, voltou a procurar a Marron e lhe relatou o triste desfecho de seu pedido de adoção. - Não imaginava que fosse vivenciar momentos tão amargos. Se há tantas crianças sem um lar, diga-me o porquê disso tudo?! – questionou Valéria. Na sua humildade e visível temor, a Marrom, procurou as palavras apropriadas, e docemente lhe falou: - Sabe aquela grandona, a Assistente Social?!... Pois é,... ela prefere dar as crianças em adoção aos estrangeiros. - “Dar?... O que os estrangeiros têm que nós não temos?” - ela custava a acreditar no que acabara de ouvir. O silêncio se fez. Valéria voltou a passos lentos para casa... Seguiu olhando os meninos pedintes nos semáforos com profunda tristeza. Embalou as lindas roupinhas do seu tão sonhado bebê e as guardou. Quanta indignação!!! ____________________________________ P.S.: este relato é verdadeiro, os nomes foram trocados para preservar a identidade dos mesmos.
Izabella Pavesi. Izabella Pavesi
Enviado por Izabella Pavesi em 27/08/2006
Alterado em 06/07/2015 |