Em Crema, o inusitado
Foi uma viagem espetacular, tão emocionante que por muito tempo tudo aquilo iria ressoar na mente deles, como num sonho delicioso, quase irreal. Elisabeth e Valmir desceram do avião em Milão, junto com 20 colegas de sangue italiano, vindos do sul do Brasil. O ônibus que os levaria em um tour pela Itália já os esperava, e Fabrizio, o motorista, os recebeu cordialmente. Logo pegaram a Autoestrada. Consultaram o GPS... direção Crema. A algazarra era inevitável... a felicidade sorria em cada rosto, ávido de aventuras. O sonho começou há longos anos atrás: 1996. Parti numa busca desenfreada, numa pesquisa minuciosa pra lá de difícil. Começou na igreja de Botuverá, e depois, na arquidiocese de Florianópolis. Folhei por longas tardes aqueles livros de “atas” antiquíssimos, do final do século XIX! Livros escritos em caracteres itálicos, folhas amarelecidas, algumas rasuras, alguns intervalos de tempo, mas... estavam lá... algumas peças faltantes da história de meus antepassados. Devido à morte prematura de meu bisavô, e a ausência de fotos, até alguns segredos se escondiam. Então, descobri que ele se casara duas vezes. Com a primeira mulher Elisabeth Carnevalli, em janeiro de 1877. (será que se conheceram no navio?) Ela viera de Frapino (Itália), e quatro anos depois veio a falecer. Na certidão não constava a “causa mortis”. (Ficamos eu e meu pai nos perguntado o que será que teria acontecido com a pobrezinha).
A segunda certidão de casamento continha todos os dados necessários à localização de meu bisavô, uma coisa rara naquele tempo. Ficamos sabendo que ele havia nascido em Sergnano, e que fora batizado na Igreja Santa Maria della Croce, em Crema, na Lombardia. Casara-se, pela segunda vez, em 1881, com Josefa Paini, minha bisavó, nascida em Mantova.
- Que notícia fantástica!... – meu pai exclamou, quando lhe apresentei os papéis. E, ficou olhando e analisando aqueles suaves caracteres que lhe tocavam o coração.
- O seu bisavô morrera muito cedo, - contou-me – e o seu avô, meu pai Luiz, órfão aos 5 anos, teve que ir trabalhar, e sempre se queixava de que, não pode estudar,.. .pois teve precisão de ajudar no sustento da família. Eram tempos duros. Se eram! – meu pai meneava a cabeça afirmativamente, reforçando as palavras. O ônibus freou bruscamente. O motorista consultou novamente o GPS... pois agora tinham que mudar de rota. A Via Milano estava em obras, interditada... e o tal GPS não avisou! Fizeram a volta e contornaram a cidade de Crema. Eusébio ia filmando todas as cenas e todas as paisagens e o pessoal da excursão. No final de 1996, em companhia de minha mãe fui ao cartório de Brusque atrás das certidões da bisavó, e das demais certidões dos avós: nascimento, casamento e óbito. Então, escrevi para os Arquivos públicos e cartórios de Milão, Cremona, Bérgamo e de Crema. Por anos, fiz o caminho das pedras, na árdua pesquisa do “elo” que me faltava, cerquei de todas as formas a tal preciosidade. Pedi ajuda ao vice-consulado, ao consulado de Curitiba, ao Círculo italiano e ao Patronato Itália. Só em meados de 2005, um email do Archivio Diocesano de Crema, encheu-me de felicidade. Fora localizada a certidão de Nascimento de meu bisavô Francesco Pavesi, que nascera em 1853... – Que descoberta!... Dei pulos de alegria!... Olhei a certidão repetidas vezes quando a recebi. Não me continha... enfim, um a um, cada documento estava nas minhas mãos. Eu era descendente de lombardos, e trentinos por parte de mãe. O ônibus tomou a Viale Europa e entrou em Crema pela Via Indipendenza, rumo ao centro. Fizeram um breve tour. Atravessaram a ferrovia e chegaram à belíssima catedral Santa Maria della Croce. Elisabeth e Valmir desceram animosamente do ônibus. O restante do grupo os seguiu, câmaras à postos, cheios de entusiamo.
- Que felicidade! – Bete exclamou, mirando pra todos os lados, tentando apreender toda aquela atmosfera...
- “Só podemos ser parentes!... E, que pena não terem chegado uns dias antes”, disseram-lhes as amáveis senhoras, entre lágrimas e surpresas.
A igreja arredondada de Santa Maria della Croce fora edificada em 1490, no século XV, projetada por Giovanni Battagio, e ainda conservava afrescos pintados na abóboda superior, esplêndidos quadros, e através de seus belos vitrais o sol resplandecia. Patrimônio da humanidade, alguns Papas já a tinham visitado. Um senhor fez um sinal à porta, pedindo silêncio. Estava sendo celebrada uma missa de corpo presente. Valmir e Elisabeth entraram na igreja. Uma quietude imperava. Deram alguns passos, diante de toda aquela beleza, de tirar o fôlego de emoção. Alguém tocava suavemente... o imenso órgão de metal... clássicas notas fúnebres. Anjos em pequenas esculturas adornavam os pilares e o altar, em meio à coroas de flores. Elisabeth estancou, de repente. - “O Senhor receba este nosso irmão: Antonio Pavesi, em sua morada no céu” – pronunciou, solenemente, o padre, abençoando o defunto que se encontrava no caixão a sua frente. Minha irmã tremeu, instantaneamente tocada.. Era o mais inusitado acontecimento. Rolaram lágrimas de emoção. Haviam chegado para conhecer a bela igreja, onde nosso bisavô fora batizado, exatamente quando um outro possível parente morria. Sem palavras! - “Amém” – repetiram todos os paroquianos em uníssono. Parentes, amigos e moradores de Crema lá se encontravam para render homenagens póstumas ao Sr. Antonio. - “Será meu parente?” – minha irmã perguntou – “Pode ser que sim... que é algum tio distante” – respondeu Valmir. Sentimentos em ebulição trouxeram lágrimas à tona. Todos foram cumprimentar a família, na saída da igreja, e logo, o defunto seguiu para sua última morada. Elisabeth se apresentou aos parentes do falecido. Duas senhoras de idade abraçaram-se a ela e ao Valmir. Os demais amigos do falecido lhes deram os pêsames!... Fotos foram batidas para que ninguém duvidasse de tamanha coincidência. Só então, Elisabeth percebeu que tinha sido colocado um aviso sobre o óbito na porta de entrada. Registrou tudo para jamais se esquecer de tão emocionante dia,... e ficou, por ali, uns minutos, conversando com aquelas senhoras sobre nossa história. Os colegas da excursão também vieram abraçá-las.
Valmir retornou ao interior da Basílica. Notou que era circular externamente, e octogonal no seu interior, como uma cruz grega. Perdeu seu olhar nos quadros: “Dell’Assunta” de Benedetto Diana (1501), na “Adoração dos Magos” de Bernardino Campi (1575), na “Nativitá” de Antonio Campi (1575), e nos lindíssimos afrescos na cúpula de Giacomo Parravicino. O ônibus buzinou. Tinham que seguir viagem. Partiram. Elisabeth, num redemoinho de emoções na alma, nem percebeu uma ausência no grupo. O choque do inusitado encontro ressoava na sua mente, e ela ria e chorava, numa mistura de emoções de encontros sonhados. - Cadê o Valmir?... gritou Elisabeth.... o Valmir!
Dez minutos depois, o ônibus deu meia volta e retornaram para buscar o viajante perdido. - “Andiamo! Andiamo!" (vamos, vamos) – exclamou Valmir ao motorista, com seu sempre bom-humor. E a felicidade continuou de asas abertas sobre aquele grupo, que resplandecia tanto quanto o sol daquele gostoso dia de primavera na Itália. (04.maio.2009)
Izabella Pavesi PS.: publicado na revista INSIEME (ítalo-brasileira) edição nº 139 Izabella Pavesi
Enviado por Izabella Pavesi em 06/06/2010
Alterado em 06/11/2016 |