O triste fim dos meus trisavós
Caminhando em minha direção, minha mãe repetia: “Coitadinha da bisavó, e do bisavô!” E perdia seu olhar no vazio... emocionada. Depois do meu pai, ela entrou no carro, dei partida e voltamos pra casa, nostálgicos. Começara de manhã um passeio pelas terras de Oliveira. Era fevereiro de 1996. Meu grande pai, que dois meses antes sofrera uma queda brutal e se hospitalizara, aceitou o meu convite. Partimos às sete horas, e, uma hora depois, entramos em Tijucas. Como era gostoso voltar àquelas terras de agricultores humildes. Minha mãe caminhou lentamente rumo à casinha de madeira. Estancou. - “Ma... Tio Afonso!!... tio... o tio...” – ela exclamou numa surpresa absoluta. Um senhor de cabelos brancos, aparecera na soleira da porta. - “Aninha!!... Madona!... que visita esperada!... que benção!!!” – exclamou ele mais surpreso ainda. Logo veio em nossa direção e efusivamente abraçou a todos nós . Era inacreditável... desde moça minha mãe nunca mais vira este tão amado tio e acreditava mesmo que já tivesse morrido, pois ele já estava com 92 anos. Ele era filho da imigrante Maria Lucia Caresia, conhecida como Marieta. Adentramos a casa ao abrigo do calor humano. Outras tias vieram nos abraçar. Minha mãe e meu tio-avô se olharam por um longo tempo, olhos cheios de recordações, olhos perscrutantes, mentes abrindo a gaveta das lembranças de tempos tão distantes e nostálgicos da década de 40. Meus olhos mal sabiam onde pousar na parede cheia de retratos e lembranças de tempos tão distantes. Os meus bisavós numa pose impecável, os tios no dia do casório, as netas no dia da comunhão católica, os quatro padres numa celebração eucarística, e outros tantos “ricordos” emoldurados. Uma curiosidade quase ofegante me cutucava... (que pena!... não achei fotos dos trisavós). Sentamo-nos na sala de estar, felizes com os raios do sol iluminando o dia. - “Conte-nos dos tempos antigos...” – eu logo quis saber. - “É... os imigrantes tiveram que trazer tudo... roupas, sementes, cobertor, panelas e ferramentas, porque sabiam que voltar era impossível”- começou – “tudo era um mato só, e aí foram abrir picadas e levantar os casebres pra viver... e isso tudo com os filhos pequenos que exigiam o cuidado a toda hora. Foram muito corajosos”. Tia Neri e tia Lisa, sentadas perto do fogão, colocavam gravetos e lenha sobre as brasas e umas batatas assavam na chapa. Pai, mãe e eu éramos olhos e ouvidos atentos. - “Triste foi o fim da nonna Marianna” – ele nos falou, pausadamente. (Há tempos minha mãe tinha curiosidade em saber o que se havia passado com a bisavó – todos a chamavam de “nonna” simplesmente, e ninguém dispunha de informações e não achava quem lhe dissesse o que teria acontecido até então). - “Foi abrir picada, isso sim, naquele tempo, tinha que fazer estrada se quisesse ir pra algum lugar... E aí ela desapareceu...” – ele falou emocionado. - “Abrindo estrada na floresta???” – perplexo, insistiu meu pai. - “Ohhh, sim... eram só árvores enormes e matagal... era tudo difícil demais...”- tio-avô puxava as palavras da memória de um tempo longínquo – “o bisnonno também foi abrir estrada, mas foi lá pra cima abrir caminho... e a nonna foi pro lado de baixo, depois de atravessar o rio.” - “... então, o bisnonno não estava junto com a nonna naquela hora?!...” - “Não... não... é triste, mas não estava junto não.” - “Quando ele viu que era noite alta e ela não voltava pra casa ele quase enlouqueceu, e ao clarear o dia foi procurá-la. Ele passou dias embrenhado “nos mato” procurando... e foi aí que achou a pobrezinha caída numa grota,... num abismo lá embaixo... quanto sofrimento!” – e continuou - “Tu lembras Aninha que a terra deles era lá no Lageado (Distrito de Botuverá) bem na curva do rio?” – deu um suspiro forte – “Logo que chegaram... uns meses depois... isso aconteceu... foi uma dor grande demais” – puxou uma palha de fumo e a enrolou. – “O bisnonno ficou desconsolado com a perda de sua mulher, esposa amada!... foi lá enterrar a pobrezinha e colocou uma cruz onde faleceu a finada Marianna...” Quando os imigrantes chegaram, trentinos e lombardos tinham de subir rio acima de canoa até o Porto Franco, depois de passarem pelo barracão dos Imigrantes que ficava lá pras bandas de Brusque, na beira do Rio Itajaí-Açú. Era um lugar inóspito de montanhas altas, abismos imensos e quedas d’água, duro de atravessar. - “E o que aconteceu depois com o bisnonno Francesco?...” – perguntou minha mãe aflita – “parece que logo se foi também...” - “Aí,...ele continuou abrindo estradas e quando foi desmatar lá pros lados de Azambuza (Brusque) desapareceu também!... isso foi uns tempos depois, sim,...” - “Que tragédia!...” O bisnonno tinha ido buscar o pagamento, precisavam... não tinham dinheiro pra comprar o que faltava. Meu tio-avô explicava tudo em bergamasco. Meu pai balançava a cabeça, pensativo – “Tinham terra, mas mal viam a cor do dinheiro...” dirigiu-se a mim - “Viu minha filha? Que tempos difícieis?...Registra...” Afonso afirmou que, possivelmente, meu trisavô foi morto pelos índios, - “pois sabe...tinha muito índio aqui, e lutar pra sobreviver era o normal, senão morria mesmo!”. Ele continuou nos contando das peripécias dos primeiros imigrantes naquelas terras, hoje Botuverá. Eles se alimentavam de frutas e peixes, de batata-doce e inhame, e era comum a caça. Uma tribo de índios habitava essas terras que foram vendidas (!!!), os xoklengs, e o que se sabe é que eram canibais. - “Nossos antepassados vieram lá do Tyrol, no tempo que pertencia à Áustria, depois a coisa mudou e passou a ser terra d’Itália” - Afonso explicava. Pouco depois de me embrenhar em pesquisas, a Comune de Fornace, no Trento, forneceu-me um “Elenco delle Persone emigrate in Brasile dal 1876” (elenco dos imigrantes em 1876). E consta lá: Francesco Caresia, nascido em 1817, e esposa Marianna Valler, nascida em 1829, que vieram com seus filhos pra nossas terras em 02.05.1876. Eles sairam do Trento foram até o Porto de Havre na França, embarcaram no Vapor Ville-de-Santos, e desembarcaram em terras brasileiras um mês depois. - “Ma... que idade será que tinham?...”- quis saber minha mãe. - “A nonna Marianna veio com 47 anos e o bisnonno era um pouco mais velho... e chegaram com os cinco filhos: Rosa, Giuseppe – nosso avô, Giovanni, Francesco e Maria Lucia” – afirmou Afonso – “conseguiram chegar sãos e salvos, mas teve muita gente que morreu no navio, que não agüentou a longa travessia do oceano.” - “É... os filhos ficarão órfãos muitos pequenos, sim... a nonna sempre contava.” – de olhos marejados minha mãe meneava a cabeça com tristeza. - “Quando chegaram aqui nosso avô Giuseppe só tinha doze anos, Giovanni dez, Francesco cinco, e a pequena três aninhos... e ficaram pra Rosinha cuidar... ela que veio já com 18 anos... quanta força tiveram que ter pra sobreviver” – as palavras do meu tio-avô saíam abruptamente, imprimindo firmeza àquela história de bravos heróis. Nossa!... fumacinha saía dos meus neurônios de imaginar aquilo tudo. Mesmo que eu já tivesse algum conhecimento do processo imigratório, mesmo que a gente tivesse se ralado pra chegar onde chegou, nada se comparava ao esforço dos nossos bisavós e trisavós, à luta daquele povo, ao abandono que a Áustria infringiu aos que decidiram, por motivos justos, deixar aquele chão europeu. Nada! - “Venham todos tomar um café...” – convidou-nos tia Neri pra nos agraciar. Não nos demoramos em saborear os seus quitutes. Tia Neri fez questão e nós unimos as mãos numa prece pelos antepassados queridos. Logo nos despedimos. O filme em VHS registrara o que nos era quase inacreditável: a saga dos imigrantes. Uns meses depois, meu tio-avô Afonso veio a falecer. _______________________________________ _____Izabella Pavesi______ Texto publicado na Revista INSIEME nº 152 - agosto .2011 - em português e italiano. Izabella Pavesi
Enviado por Izabella Pavesi em 25/07/2011
Alterado em 15/09/2011 |