Mantova, Mantova!
Chegamos à estação com as saudações da lua nova de abril, em plena primavera o ar abafado impregnou-se na minha pele, faziam 31º e a umidade baixíssima me tirava o fôlego. Mesmo assim uma palavra exalava doçura em minha boca: Mantova!... Mantova! Sorri emocionada ao olhar de um lado a outro. Eu havia alcançado a terra de minhas bisavós: Josepha Paini, avó de meu pai, e Ernesta Demarchi, avó de minha mãe. Ambas emigraram para o Brasil em 1876, e se casaram em Porto Franco (hoje Botuverá/SC). Josepha se casou com Francesco Pavesi, meu bisavô, e Ernesta se casou com Giuseppe Caresia. Já deviam ser umas nove horas. Procuramos táxi, eu e Lisa (irmã de minha cunhada)... mas, não se via nem sinal. Fomos puxando as malas pelas calçadas. Mantova, possivelmente, foi fundada pelos Etruscos (conforme restos arqueológicos); e séculos depois, esteve sob o domínio do Império Romano. É uma ilha convertida em terra firme, pois até o final do séc.XVIII era circundada por água. A romântica cidade é banhada por três lagos: à leste, Inferiore, ao norte, Lago de Mezzo e à oeste, Superiore; dentro desta pequena porção de terra permanecem as relíquias e os tesouros de uma rica época em tempos idos. As rodinhas das malas iam acordando as tulipas, os jasmins e os freqüentadores dos bares... Pegamos a Via Solferino, depois Via Marangoni, depois Corso Umberto I, chegamos a Piazza Marconi... e nem sinal da nossa pousada. A dona (Sra.Maria) me ligou preocupada: “prende um tassi” (pegue um táxi) me disse. E nós... sem achar sombra alguma deles. Que aflição!... A pousada ficava perto dizia o mapa. Paramos e perguntamos pra uns e pra outros... e nada! Entramos numa pizzaria e perguntamos pro imigrante que atendia onde ficava o tal lugar. Ele olhou o mapa e olhou, e eu deduzi que ele havia acabado de se instalar aí. Liguei pra Sra.Maria que nos aguardava aflita, e ela me repetiu: “Pegue um táxi!”... Não os achamos! Uma hora depois, adentramos a Via Buozzi, uma rua estreitinha, e lá no final, estava ela, incrédula, a face enternecida, na porta da sua pousada... uffa!... finalmente! - Piacere (é um prazer), Izabella – me disse emocionada – Entrem!... entrem! O aposento era muito aconchegante e logo fomos dormir exaustas da viagem. Dia seguinte, Sra. Maria nos presenteou com um dos melhores cafés da manhã que já tive longe de casa. Delicioso! Ela era pura gentileza, tratava-me como uma grande amiga de longa data. Éramos bem-vindas!... fez docinhos de páscoa (que se aproximava), bolo caseiro, geléia e outros quitutes. Que delícia! E fez questão de me apresentar a ajudante brasileira que a auxiliava nas tarefas da casa (a jovem veio correndo de bicicleta pra me conhecer). Mantova é um compêndio de história de arte, ali nasceu o poeta Virgilio (70 a.C.-19 a.C.), que se orgulhava em suas poesias de ser mantovano. Logo cedo, caminhamos até a Praça Virgiliana, onde um imenso jardim e uma grande estátua o homenageiam. No séc. XV, Mantova se tornou um fervoroso centro cultural do Renascimento, graças à presença de Leon Battista Alberti - artista, poeta, padre e arquiteto, e outros expoentes como: Andrea Mantegna e Giulio Romano. Transeuntes iam e vinham pelas praças e cafés no alegre e ensolarado domingo. Fomos até a Praça Sordello, onde o Palazzo Ducale se ergue esplendoroso ao lado do Duomo. - Veja que interessante!... estátuas do século XVI... a Scuola di Mantegna fez história! – encantei-me logo pela esplendorosa cidade. A Piazza Sordello é um desses lugares que as pessoas chegam e ficam ali sentadas nos barzinhos conversando despreocupadamente apreciando o Duomo e o Palazzo Ducale. O Duomo ou Catedral de San Pietro seguramente existia já no século XI, mas dessas primeiras pedras restam só alguns vestígios; em 1551 foi posta nova fachada, em 1548 uma outra parte fora reconstruída, e assim, com aspectos góticos, barrocos e venezianos, em 1761 foi concluída. É elegante, imponente e cheia de ricos entalhes esta igreja medieval, e inigualável o esplendor do seu interior com a luz solar adentrando pelos vitrais, embora em uma das três capelas obras de restauro se faziam presentes. O Palazzo Ducale foi construído no séc. XIII, sua belíssima fachada e seus tesouros ainda fascinam: os afrescos do corredor del Passerino, suas estátuas e muito desenhos de Pisanello, o grande artista; surpreendem as pinturas fantásticas da sala degli Arazzi que remonta ao séc. XVI, e o esplendor e riqueza no Salone dei Fiume. Adentramos ao Giardino Pensile... um jardim suspenso muito agradável. Em outra ala, destaca-se a impressionante pintura no teto da sala del Labirinto com seu intrigante desenho em ouro e o quadro L’Eta dell’Oro de Sante Peranda que remonta ao séc. XVI. Extasiados, meus olhos percorreram os inúmeros quadros e os maravilhosos lustres de cristal nos tetos refinados, um luxo só!... e meu amor de um tempo passado emergiu em minha mente naquele momento. Que saudades! Ao entardecer, passamos pela Torre dell’Orologio e Rotonda di S.Lorenzo, e as lindíssimas glicínias que cobriam os muros me coloriram o pensamento. Uma velhinha simpática nos olhava duma janela, e me veio à memória a história de minha bisavó: – Nonna Ernesta fez um lindo enxoval todo bordado quando era solteira (recordei das palavras de minha mãe) – e com os pais e irmãos emigrou para o sul do Brasil; o navio foi pego por uma terrível tempestade... e o casco rachou... e todos os passageiros tiveram que pegar suas roupas pra tapar os buracos do navio... foi a única solução pra poderem chegar em terra... e mesmo velhinha a nonna Ernesta jamais esqueceu disso, desse momento dramático de sua vida, e do quanto foi sofrido chegar nas novas terras e alcançar a longínqua Porto Franco (Estado de Santa Catarina). – Sorri pra doce velhinha que me seguia com o olhar. Caminhei nostálgica. Almoçamos perto da Piazza Erbe, apreciando o sol primaveril sobre a cidade... Brindamos com um bom vinho a minhas bisavós, e aos bisavôs!... graças a eles eu estava ali. Dia seguinte, seguimos até Le Pescherie... um lugar lindo, sobre o rio limpo que atravessa a cidade. Turistas iam e vinham como nós em busca dos tesouros do lugar. Cada ângulo, cada ruazinha, cada igreja e cada praça é um convite ao prazer de passear e comemorar a vida pra jovens e velhos. Em frente à Praça Dante, um complexo de edifícios abriga a Academia Virgiliana construída por iniciativa da Imperatriz Maria Teresa d’Absburgo, no séc. XVIII, e o fantástico Teatro Bibiena, exemplo notável de arquitetura teatral barroca, com quatro pavimentos de luxuosos camarotes, e de tal grandeza que em 1769 se apresentou ali o jovem compositor Mozart. Uns quarteirões adiante, antigos portões e um imenso jardim anunciavam o belo Palazzo TE!... construído em 1525. Gigantescas colunas, salas suntuosas com afrescos que exibiam o esplendor de outras épocas... uma espetacular sala dei Cavalli, com teto refinado e diversas estátuas. Uma extensa sala di amore e psiche com desenhos únicos e muito originais; a impressionante “Loggia Grande ou de David” exibindo belos mosaicos e em cujo espaço foi recebido o imperador Carlo V, em 1530. Um milimétrico fio de luz adentrava a sala dei Giganti, acentuando os tons vermelho-escuro e as pinturas de Rinaldo Mantovano... sequer se imagina a sua grandiosidade. O palácio também abriga o Museu Cívico com as coleções de Giuseppe Acerbi (egípcia), a Galleria Gonzaghesca, e a Galleria di arte Moderna. Outras construções também são memoráveis: a igreja de São Sebastião, que é uma das mais significativas obras renascentistas de 1460, o Castelo di San Giorgio, o Museu Tazio Nuvolari, o Palazzo di San Sebastiano, o Palazzo d’Arco, o Museu Francesco Gonzaga, entre outras. A velha casa bem restaurada onde nos hospedamos, tinha o aroma da minha memória. Flores vermelhas viçosas no parapeito da janela me arrancaram sorrisos. Uma lasca de parede envelhecida na sala de jantar deixava à mostra mais que lembranças, soavam ruídos saídos dos vultos que o vento levara pra nossa terra Brasil. Seria a casa de minha bisa assim aconchegante? Certamente que sim. Deu-me vontade de ali habitar, como um retorno ao lar, pareceu-me que a casa já amalgamara em mim suas finas raízes. Sou herdeira daquela terra, de seus cheiros e aromas, de seu vento e de sua chuva que escorre pra além de minhas lembranças. Subi e desci a escadaria com seus vasos grandes, belas folhagens e os ladrilhos do chão ferruginoso. Os dias que passei ali me reportaram para dentro de mim mesma, há um tempo passado. Sim, era pra onde eu tinha que ir um dia, pra onde tinha que voltar como se tivesse estado num tempo impreciso. Como foi bom visitar essa casa! (Minha bisavó Ernesta Demarchi nasceu e foi batizada em Mantova, filha de Scipione Demarchi e Ângela Martini; casou-se aos 24 anos, em 30.abril.1885 com Giuseppe Caresia na Capela de Porto Franco/SC e veio a falecer aos 76 anos. Quanto à bisavó Josepha Paini, sei que emigrou para o Brasil com os pais Ferdinando Paini e Ângela Salasin, aos 13 anos e casou-se aos 18 com meu bisavô Francesco Pavesi, nasceu em Mantova e a certidão de óbito não foi encontrada). Ao anoitecer, depois de percorrer todas as vias, as ruelas e praças, surpreendi-me com um som muito peculiar. Num canto da praça um rapaz tocava um pistão... (ou seria saxofone?) algo assim, tirando uns acordes conhecidos: “Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho...” cantarolei baixinho... Aplausos!... Impossível não sorrir, não se sentir feliz e abençoada. Seguimos pra nosso abrigo e fizemos as malas. Despedi-me da Sra. Maria prometendo voltar. – Reclamei na prefeitura - ela se explicou – não imaginei a falta de táxis!...Voltem sempre!... Serão sempre bem-vindas! – Muitíssimo obrigada, amei estar aqui na sua casa e nessa linda cidade! – dei-lhe um longo abraço. Que momento único na minha vida! ___________________________________________________________ IZABELLA PAVESI 10.04.2012 Foto: internet _________________________________________________________________________________________ TEXTO PUBLICADO NA REVISTA INSIEME nº 167 - publicação em português e italiano - de novembro.2012 Izabella Pavesi
Enviado por Izabella Pavesi em 04/10/2012
Alterado em 04/12/2012 |