CUIDADORA EM BASSANO
Tinha decidido passar uns meses na Itália, seja como fosse. Visitei Milão e Veneza, e depois procurei umas amigas em Bassano Del Grappa, no Vêneto. A falta de cuidadoras por lá é grande, pois há uma população idosa crescente. Assim, logo conheci Dona Sabina e família, e passei a cuidar dela, num frio inverno, alguns anos atrás.
Minha patroa, mulher forte e alta, era daquelas matronas italianas, já com seus 87 anos, dona de um restaurante chique no topo de uma colina. Sua casa era toda aconchegante e eu dormia no quarto dos fundos. Cuidar dela foi difícil, pois já apresentava sintomas da senilidade: artrose, artrite e etc. E, em meados de janeiro foi internada no hospital San Bassiano, de Bassano Del Grappa, com diverticulite (inflamações no intestino). Esse hospital tem amplas salas no andar térreo e até exposição de pinturas no hall de entrada. “Putz! Que barra!... É domingo... estou no hospital com a idosa. A coisa está braba aqui,... Dona Sabina está bem... após horas de delírio febril”. Quase desatei a vomitar, cedinho, quando chegamos nesta enfermaria no décimo andar. Eram quatro senhoras no quarto, quatro em fase terminal!... Imagine... depois do café, chegou a quinta paciente em estado medonho. Gritava... e gritava. Exibia as calças e não conseguia respirar. A enfermeira colocava a máscara de oxigênio e ela a tirava. Foram horas nesse estupor. Chamaram a doutora geriatra algumas vezes e a enfermeira não parava de correr de cá e de lá. Saí da sala pra respirar. A ampla sala envidraçada dos visitantes mostrava a cidade com suas montanhas ao norte. Uma televisão entretinha alguns pacientes com familiares. Na RAI, um telejornal mostrava coisas de politicagem. Depois, mudaram o foco (ainda bem!), a as atenções se voltaram para o Papa e o povo na Praça São Pedro. Não obstante os desvios desse mundo, o povo continua fiel ao Senhor Deus. Ali adiante a neve nos cumes me fascinava. O sol deitou-se suavemente brilhando e encantando a todas as gentes. Que lugar lindo! Bassano!... seus cafés são tão deliciosos!... Vejo alguns chineses na tevê indo para casa para festejar o Ano Novo chinês, eles curtem essa virada de ano de acordo com os bichos do horóscopo. Bem interessante! (Ano 4703 : Ano do Cão)... Ótimo... alguma coisa de bom e alegre no meio desse turbilhão. Lá todos vestem algo de vermelho pra dar sorte. Legal... já entrei no clima... vim de blusa e echarpe vermelha. Outro dia no hospital. Que sufoco! São longos momentos de espera... Sabina dorme, graças a Deus! O casal visitante ao lado se despede e sai... eles estavam perto da senhora nº 1 desde manhã cedinho. Ela tinha olhos belíssimos verde-rubi, um encanto. Cumprimentaram-me: “arrivederci!”. Muito simpáticos, conheciam minha patroa. - Mete su la maschera! (coloca a máscara!) – exclama o rapaz, repetidamente, a sua mãe, que desde cedo faz um escândalo. Ela a tira, e o coração dispara: 131.. 132... 140... 141 batimentos cardíacos!... quase para!... e o aparelho buzina seguidamente. Se ela não ficar com a máscara de oxigênio é suicídio. Nossa!... que mal estar!... Fui lá fora respirar. Desci pro térreo que é bem amplo, o teto bem alto, com dois excelentes bar-cafés, uma floricultura pequena, salas de estar envidraçadas e isoladas, tudo muito confortável. Tomei um chocolate quente. Chegaram três senhores da Cruz Vermelha Italiana, bem distintos, conversaram e tomaram café. Outro dia também vieram aqui, eles trazem gente necessitada de cuidados médicos. Alguns visitantes conversam tranqüilos, outros, silenciam apenas. De volta pro andar dos idosos, tudo continua igual. O horizonte me sorri lá fora... deslumbrante e cheio de vida. Está se dissolvendo a imensa luz que imperou nesse dia, os tons do anoitecer vão cobrindo o céu, a neve relutante ainda brilha. Domingo seguinte, fui ao hospital com o filho da Sabina. O marido dela ficou em casa, vendo televisão. Ele pouco vai vê-la. Fica na frente da telona e se distrai, depois sai pra buscar lenha e faz fogo na lareira. Também busca excelentes pratos do restaurante pra mim, no almoço e jantar. Dois meses se passaram assim. Na casa da patroa, amanheceu. - Uau!.. que encanto!!!... a neve outra vez!... abri a cortina e vi o espetáculo. Ela caía belíssima, aquele farelinho branco como se fossem anjos que o derramassem sobre a terra trazendo a paz. Um alvo lençol outra vez!... é a quinta neve que cai neste inverno. Peguei a câmara e fiz fotos rapidamente lá fora, no maior frio. Admirando a paisagem, enchi-me de felicidade. A chuva então, decidiu cair também, gotas grossas batiam na vidraça da casa. Que maravilhoso cenário! Sr. Lorenzo fez um bom café, e também fez fogo no fogão de lenha e depois me levou pro hospital. Então, o dia foi menos ruim que os dias anteriores. Vi um pouco de tevê. Assisti a neve cair também em Bassano, das janelas do hospital. Mas, ando com o estômago embrulhado... ser cuidadora não é fácil. Fui lá no quarto conversar com Dona Sabina, mas ela estava quieta, o olhar perdido, fiz o que pude... e assim passou o dia. Avisei a filha dela que possivelmente eu os deixarei no final do mês. É domingo, novamente. Olho meus sapatos novos com um olho, e com outro, acompanho Sabina. Ela anda cansada do hospital, e eu, mais ainda. É deprimente! Há pouco, dei-lhe duas pílulas que uma enfermeira simpática lhe receitou. Assim, ela repousa. Ao lado dela, Dona Lívia, muito serena com seus 88 anos. Está aqui faz uns dez dias, parece que precisa colocar marca-passo. Do outro lado está D.Maria, com um filho divertidíssimo. Fui abrir a janela e pedi permissão pra erguer a persiana só uns dez centímetros. - Sono dodici e mezzo! (são doze cm e meio!)... – Ele brinca. Rimos. Desde que chegou faz umas brincadeiras com a velhinha e a belisca, e ela rebate, faz o mesmo com ele. Ele tenta lhe colocar a dentadura, mas ela não está a fim!... é muito divertido. O mal de Alzeimer a atacou de tal forma que ela não lembra que ele é filho dela. Ele sofre visivelmente, e brinca pra disfarçar. Ele conta que tem 52 anos, é divorciado... e não quer mais se casar. É elegante. Por sorte, a presença dele torna as horas mais agradáveis e o dia passa mais rápido. A velhota repete sem parar: - ah... ah... ah... Então, ele sugere: - Mamma, não pode mudar pro b, c, d,... tem que ficar repetindo só esse ah?!... E ela continua a gemer... A cuidadora romena veio pra ajudar, pois D.Maria é muito difícil e sempre tira os lençóis, não quer se cobrir. Minha patroa assiste com lágrimas nos olhos. Depois, fecha-os deixando-se levar pelo marasma desse hospital. Olho pela janela. Contemplo as flores. Sabina ganhou quatro lindos vasos de tulipas e rosinhas. À uma hora da tarde desci pro térreo e tomei capuccino com brioche. Na volta tudo continuava igual. A Sra.Maria queria tirar o soro, o filho a segurava, tentava mantê-la calma. A velhota o chamava de “palhaço”, ele dizia que ela é malandrinha, é cômica. A cena era divertida. No meio da tarde chegou o irmão do jovem e ele se foi. Em casa da D. Sabina ajeitei minhas coisas, pois estou quase partindo... Ser cuidadora foi uma experiência marcante. Pude me inteirar, desde já, do que nos reserva a velhice se não tivermos o absoluto cuidado com a saúde. E mesmo assim, a senilidade chegará pra muitos. No último domingo de fevereiro fechei as malas. Despedi-me de todos e especialmente da Núbia, nora da Dona Sabina. Que pessoa legal! Eles foram muito bons pra mim e eu sempre lhes serei grata. Sinto mesmo. Conversamos, ela fez questão de sentar umas horas comigo e falar de seus filhos adotivos (brasileiros). Ela tinha por eles um amor incomensurável, eu os conheci,... crianças adoradas. Sentirei saudades, sim! Aconteceram tantos percalços, mas graças a Deus, a gente sempre se lembra das coisas boas... foi um grande aprendizado pra minha vida. __________________________ IZABELLA PAVESI Texto publicado na Revista INSIEME - nº 181 - janeiro.2014, em português e italiano. Izabella Pavesi
Enviado por Izabella Pavesi em 12/01/2014
Alterado em 16/02/2014 |